segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

A Viúva do Vestido Vermelho



Gilson Cavalcante

Domingo à noite. Lurdinha rói as unhas, coça a cabeça. A TV lhe prende a atenção. Adora casos de violência, sexo, drogas, escândalos. Passa as mãos nos cabelos, ainda molhados, jogando-os para trás. Cabelos compridos, encaracolados e bem tratados.

Pensa nas compras que tem de fazer na terça-feira e no salão de beleza. O marido ainda não chegou. Saíra à tarde para um partida de futebol. A cabeça de Lurdinha a mil, envolta em futilidades. A traição e a infidelidade têm ocupado boa parte de seus pensamentos.

Casada com um político de poucos estudos, Lurdinha, 28 anos de saúde e tesão, vive de fomentar fofocas. Coleciona revistas e filmes pornográficos. O telefone toca. Lurdinha pula do sofá, puxando o minúsculo short de malha fria, metido confortavelmente, no traseiro; joga o chiclete da boca pela janela.

Lurdinha atende ao telefone: “Nossa, é mesmo, Marli?... Por quê? Eles parecem que viviam tão bem... Home num presta mesmo, né?... Mas ela também dava motivos, tava muito na cara. Muita gente tá sabendo. Isso vai ser um escândalo, uma ver... peraí, meu marido tá chegando, tchau”.

Lurdinha bem que poderia gostar de poemas. Mas aí ela perderia aquele encanto, aquele mistério de mulher doida pra pular a cerca e fabricar o pecado na sua usina de prazer reprimido. Seus seios não saem de minhas mãos. Lurdinha há de morrer um dia em meus braços, se desmanchando em orgasmo. Logo eu, responsável pelo desencaminhamento de minha amiga? Não. Isso é muito pra minha cabeça de poeta. E se nós nos apaixonássemos? Um pouco da minha literatura morreria com esse amor, mesmo que o sustentássemos clandestinamente.

“Agora, bem? Onde cê tava? Jogando bola ou tomando cervejinha por aí?”. O marido não responde. Passa direto para o banheiro.

“Nossa, transei com aquela garota, sem camisinha. E agora? Será que vai ter problema? Amanhã ligo pra ela pra passar algumas coisas a limpo”. A cabeça de Ricardo fervilha. Uma hora no banheiro tentando esfriar a mente.

Aquele telefonema de Marli mexeu com os arquivos de Lurdinha. Ela fica agoniada para chegar logo segunda-feira. Na terça, tem que ir às compras.

Ricardo está no décimo sono. O quarto todo desarrumado: cuecas para um lado, meias para o outro. Uma cartela de lexotam, faltando alguns comprimidos, sobre o criado-mudo. O silêncio é quebrado pelo ronco alto de Ricardo.

“Acorda, seu porra. Agora cê vai me contar por onde andava. Pode acordar. Tava atrás de puta, né?”. Nada do marido despertar. Lurdinha o puxa para um lado e para o outro. O quarto cheira à dramaturgia nelsonrodriguiana. Sobre o criado-mudo os óculos, um relógio, um envelope de tranqüilizante. Se esse criado resolvesse falar...

“Diabo. Bem que Marli poderia me dar uns conselhos. Será que posso contar pra ela sobre meus planos?... Ah, ela também não é flor que se cheire. Até acho que tá de rolo com o mecânico dela, aquele negão cheirando à graxa e a solda elétrica... só pode ter um pau doce”.

Lurdinha observa o marido dormindo meio atravessado na cama. Dentro do criado-mudo um revólver calibre 38, jamais usado, nem mesmo por esporte. No sono a morte seria mais suave? Uma arma de fogo, naquela altura da madrugada, bem que teria motivo justo para ser usada pela primeira vez. Lurdinha pega o revólver, toda trêmula. Excita-se com aquele cano longo. Um pau-de-fogo entre as coxas...

“Ai, que horror!”, espanta-se. “Cedinho a polícia estaria aqui. (´Cadê a arma? Foi atentado? Por onde o malandro entrou´?). Seria um escândalo. Eu na primeira página dos jornais. Só assim mesmo para ser destaque... Não, não...”.

Quase meio-dia de segunda-feira. A empregada tenta descobrir os motivos que levaram Lurdinha a está ali no sofá, completamente nua, pernas abertas e a boca de apanhar lua, escancarada. Ricardo, que saíra cedinho, sequer tomou café. Deixou o filho na escola e dali mesmo, tentou, em vão, falar com a garota de programa.

Enrolada numa toalha florida, Lurdinha senta-se na cama e disca para a amiga. Ninguém na ponta da linha. Marli teve que fazer uma viagem rápida, mas voltaria no dia seguinte, logo pela manhã. Decide sair pra rua. “Não vou almoçar em casa. Não sei que horas volto”, avisa à empregada, que tenta dizer alguma coisa, mas não consegue...

Lurdinha vai ao salão de beleza e, em seguida, ao banco. Passos largos dão um ritmo provocante àquela mulher de um metro e oitenta de altura, metida num vestido de cetim vermelho e sustentada por um par de sapatos Luiz XV. Os clientes do banco esquecem da fila. Há uma unanimidade naqueles olhares masculinos cheios de poesia venenosa.

Ricardo está em casa à espera da esposa. À tarde, não vai ao escritório político. Esquece, por algum momento, o caso com a garota de domingo e passa a bolar alguma estratégia para a sua reeleição à Assembléia Legislativa. Marteladas na mente: “será que ainda encontro aquela vadia? Por que ela fez isso comigo?”. Ricardo resiste em fazer exames. Receia ter contraído o vírus da Aids. Está disposto a não transar com sua esposa até que tudo esteja esclarecido para ele. Mas Lurdinha pode ficar mais desconfiada ainda. Que nada, ela quer mais é um pretexto para dar umas escapulidas sem que a sua consciência a condene.

Cai a noite. Lurdinha já havia fumado duas carteiras de cigarros e entrava na terceira. Vai a uma locadora de vídeos. Vasculha, demoradamente, a seção de pornôs, sempre olhando para os lados, verificando se não tem alguém lhe observando.

Lurdinha chega em casa. Ricardo está dormindo em frente à TV. Ela vai para o quarto, desfaz-se das roupas. Apóia a perna esquerda sobre o vaso sanitário e começa a tocar as cordas de seu violino desafinado. O espelho não lhe cabe. Ela some dentro da própria imagem refletida ao avesso.

O telefone toca. “A vida é assim mesmo, minha filha. A gente não pode perder tempo. Fica velha e não aproveita nada. Mas vai com cuidado. Se o Rica descobre, cê fica com uma mão na frente e outra atrás. Acaba todo luxo, toda mordomia”, aconselha Marli.

Supermercado lotado. Lurdinha está decidida. Mas com quem ela cometeria seu primeiro caso de infidelidade. Com um desconhecido? Um amigo do esposo? Com o seu médico ou dentista? Pensa no mecânico, no guarda-noite. Ainda aparece uma pontinha de receio, mas se excita com a possibilidade. Marli olha, incisivamente, para um dos açougueiros e já tem definida a sua próxima “vítima”.

As duas começam a escolher frutas e legumes. Maçãs vermelhas, enormes, são acariciadas por Lurdinha. Seus seios deveriam ser como aquelas maçãs sendo mordidas. O pecado em suas mãos desenha a árvore da volúpia.

“Aterrissa, mulher. Isso aí não tem vida, não”, interrompe Marli, com ares de deboche. Lurdinha ajeita o decote e reassume a direção do carrinho de compras.

“Promoção relâmpago na padaria. Pão a cinco centavos...”, anuncia o sistema interno de som do supermercado. Lurdinha se assusta. Morde a cenoura e dá um grito.

“Atenção, ouvintes, notícia extraordinária. O deputado Ricardo Freqüência acaba de ser acidentado. Seu veículo se chocou com uma carreta carregada de verduras, que transitava em alta velocidade pela avenida Teotônio Segurado. O parlamentar foi conduzido ao hospital em estado gravíssimo. Talvez não sobreviva. Mais detalhes do acidente no noticiário de meio-dia”.

Em estado de choque, Lurdinha não sabe se ri ou chora. As duas deixam as compras no carrinho e vão pra casa. Marly a consola. Palavras de reconforto, de ânimo, carícias. Um tranqüilizante antes do banho morno. No banheiro, Marli tira a roupa de Lurdinha e a coloca debaixo do chuveiro. Risadas histéricas entremeadas com choro e soluços.

Marly começa a ensaboar Lurdinha. “Tira a roupa também. Quero te ver nua. Cê tem celulite? Tem vergonha de mostrar o corpo. Olha o meu, ó, (pega nos seios e na bunda), tudo em cima”. Gargalhadas desesperadas.

“O deputado morreu”, grita a empregada.

Viúva, nova, com uma pensão gorda, Lurdinha se sentia culpada e, ao mesmo tempo, aliviada. Seus fantasmas habitavam, agora, Marli.

“VOTOS DE PESAR VG MINHAS CONDOLÊNCIAS PT”.

Antônio Confidente, 1º suplente de deputado.

“Vote em mim, tenho um passado limpo”, grita do palanque a viúva do vestido vermelho, pedindo votos para vereadora, em dobradinha com Antônio Confidente. Vaias e aplausos. A poucos metros dali, num barracão improvisado, coberto com lona preta, cestas básicas são distribuídas. O serviço de alto-falante anuncia grande forró e show com dupla sertaneja, tentando segurar a “clientela”.

Divagações

Divagações

Parece um castigo

remendar os rascunhos
dos gestos definitivos.

(Gilson Cavalante)
V I S G O

Gilson Cavalcante

Na clarividência
das mangabas
o visgo do vôo
no vão da fala
des/aba abismos.

O pássaro mitológico
leva no bico o passado
na ordem dos invertebrados
e o fígado de Prometeu.

Tudo que cai é meu
grito de batismo.

Vivo de aparar estrelas
cadentes no cesto
do ceticismo.

Faço das cordas
o cadafalso do lirismo.

Lembranças:
aviões e navios de papel
carretéis de linha
lápis de cor sem pontas
e uma borracha
de apagar os borrões
da alma dos jornais.

- Toda herança.

Centelha


Sem teto
sem nada

contudo centelha

na/morada nova.


(Gilson Cavalcante)