quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Sou o que desconheço

Gilson Cavalcante


Sou o que desconheço.
Desde cedo, muito cedo
inventei de vestir os avessos
dos caminhos e suas bifurcações.
Sou o que desconheço, sim.
É que o avesso me vestiu a alma muito cedo.
Ando rasgando endereços, fugindo dos laços.
Mal amanheço.
Sou, sim, repito, o que desconheço,
o avesso do espelho nos olhos teus.
Por isso, me esclareço nas noites de insônia,
quando me entrego completamente
sem os adereços da hipocrisia.
E tem mais:
podem me achar louco,
lúdico, varrido.
Mas são nessas circunstâncias
que amo as pessoas, os bichos,
a natureza. Nunca me dou por vencido.
O resto que me sobra
é asfixia e sombra.
Deixem-me partir, estou atrasado.
Levo para o futuro
a fisionomia macia dos parafusos
vou apertar meu outro lado.

SOLILÓQUIO

SOLILÓQUIO

Gilson Cavalcante

Um ser só
sabe em si
o silêncio
de repartir
o dom da dor.

A vida divida é dádiva
e a dívida é dúvida
que não se compartilha.

Sou a sorte jogada
pelas ruas e becos.

Sou a arte desfigurada
pela inscrição nos muros.

No meu interior há ainda pecados capitais a saldar.

Sou ainda a parte alada
da poesia concreta,
a boca-de-lobo
à espreita dos ratos
e dejetos,

a solidão
das madrugas frias
vigiada pelo galos,
o conteúdo exagerado
das lembranças esquecidas
sobre o jirau de aparar estrelas.

De ser tão só
aprendi a criar asas
pra assustar meus fantasmas.

Agora posso dormir
em minha companhia.
Só os sinos me estendem
a alma além das esferas.

Diálogo com o anjo

da retaguarda

Gilson Cavalcante

Um anjo me soprou no ouvido
que as coisas líquidas são
mais fáceis de serem engolidas.

Só me esqueceu de dizer
como lidar com a ausência
e o seu calendário pontiagudo.

Sei que o hálito das manhãs
me enlouquece e esqueço
que sou feito de osso, sangue
e gemido. E grito.

O mesmo anjo ventilou
suas asas em meus olhos
e me tangeu para a vertigem dos abismos.

Quis ele que eu fosse palhaço
e roubou meu sorriso
e me vestiu de andrajos.

Vago, vago por aí
à procura de trapézios
e do conteúdo das coisas adiadas.

A árvore da volúpia
me despiu dos pecados.

Sou a solidão do que esclareço
e nego. O que mais querem de mim
senão a ferrugem do punhal
na jugular do poeta?

Quero uns olhos
emprestados pra chorar.