janela. jaz nela o vão
de todas as esperas
o vôo embalsamado
das aves-primavera
janela de espiar
as moças (donzelas)
indo para a igreja
domingo
janela de adular o vazio
dentro da tarde que se vai
na silhueta do infinito
como um grito amarelo
(a saudade levada no bico)
janela de olhos vasculhando
o defunto em sua caixa
de música tocando seus ossos
de encontro às raízes que plantamos
sobre o cálcio da solidão
do sossego do gesso
pássaros assombrados
de asas de fogo fecham
a janelacônica
voo de enxugar o gesto
com o ferrolho da infância
no vão das coisas que passam
e ficam presas dentro da gente
quarta-feira, 7 de abril de 2010
terça-feira, 6 de abril de 2010
O decote de Vênus
por Brasigóis Felício*
Vem de Palmas um novo e bom livro do poeta e jornalista Gilson Cavalcanti. O título é “Anima Animus ou o decote de Vênus”. (Edição do autor) Coletânea de poemas que li com deleite, como um apreciador de boa poesia o faria, ao se deparar com textos de boa fatura poética, de autor naturalmente dotado para o cultivo da arte maior da literatura. De há muito aprecio a poética deste autor tocantinense, hoje vivendo e trabalhando em Palmas, depois de boas e produtivas jornadas em Goiás, onde teve boa passagem pelo jornalismo e nas lides culturais, sempre generoso e aberto às boas novidades.
Gilson Cavalcanti escreve versos simples mas não simplórios. Ele tem domínio do verso, tem humor, sabedoria, e uma verve meio satírica, o que o faz palatável aos viventes humanos dotados de sensibilidade e recepção para a arte poética. Já pelo título se vê que todo o livro tem como tema único o plural universo feminino. O poeta abre o volume com um texto da poetisa Yêda Schmaltz, a quem homenageia mais uma vez, no corpo do livro: “Esta vontade de morder o mundo/e o mar que me afoga/as mulheres estão continuando/no sofrimento do amor,/que droga/mulher não presta para nada/a não ser para chorar/”. (In Baco e as Anas Brasileiras).
Já na abertura do livro Eva toma a palavra, sendo a voz narradora constante: “Sou Eva/a viva flor primeva/a que desceu do paraíso/a par do que precisa consertar/Sou Eva/doida doida/doidivana, doidivina/a que se dividiu na dor/parindo outras dores/ Fui Eva/ de cama mesa e banho/meu corpo não tem tamanho/e trago na carne hipocondríaca/contorcida entre costelas/a serpente entretelada de estrelas/”. Depois de outras pérolas, uma pitada de ironia: “O meu corpo/arado aos dentes/para o caminho das estrilas/sou Eva e vivo/de semear a semente/no sutiã dos conventos/a mulher de quatro elementos/para o espetáculo da nova era/”.
No poema A seda que enreda o bicho, em feitio de homenagear a poetisa Yêda Schmaltz, assinala o poeta G.C.: “Yêda em sendo seda/enreda o bicho poesia/borda a senha da boca/onde o amor é/borboleta louca”. E, no final do poema: “Yêda costura sonhos/em ritmo de des(a)fios/é a alquimia de todos nós”. No poema seguinte, Questão de hábito, indaga: “O que guardas/debaixo desse hábito/de cambraia, mulher?/ A castidade em nome da fé/ou o ferrolho do prazer?”. Responde então o poeta: “Pois não vale a castidade/em nome da fé/uma colherinha de café/”.
Esmera-se em ricas metáforas, em seu poetar sobre o mito e o fascínio do feminino – e mesmo a essencialidade de ser reprodutora e útero da vida, o poeta não endeusa, não mitifica – mas questiona, espicaça, como no poema A mulher e o espelho: “De frente ao espelho/os seios hiperbolizados na mão/como quem semeia fruta-pão;em pleno outono/(...) Por que tudo o que é feminino/cheira a naftalina?/. (...) O vestido de noiva/o hímen complacente/que guardo de presente/ao amado:/o gesto transparente/escorrendo na grinalda do tempo/”. Poesia rica em imagens, inventiva, cheia de verve.
Mais adiante, o poeta questiona o sulco dos hábitos de sua musa, real ou imaginada pela licença poética: “O que guardas/debaixo desse hábito de cambraia, mulher?/A castidade da fé, ou o ferrolho do prazer?”. Gilson Cavalcanti permite-se a licença poética de brincar com os versos popularizados na canção de Ataulfo Alves, sobre Amélia, a mulher sem vaidade: “De verdade, Amélia era a melhor/porque despida de menor vaidade/de Amélia a Maria Bonita,/ a boca maldita da contrariedade/”. No poema Cabra da peste, uma mostra de sua verve bem humorada:”Maria da Guarda/é neta da noite/bebe até ficar rica/compra briga por açoite/”.
Há uma hora marcada para o encontro do tempo dos relógios, e com os perigos vertiginosos do sexo? O poeta reflete: “Sem horas/atrás do amor/rumo adiantado/A ausência/adia a cor do pecado./Há dias, os ponteiros do meu sexo/apontam para o seu sexo/Qual dia acerto? São pitadas de brincanagem, adicionadas, como ervas finas, à geléia geral da linguagem – que vem a ser a alquimia da transfiguração do verbo, na criação poética.
Eu digo: elas por elas tivemos Elis/que só não foi feliz/por que não quis?/Mais leve de fardo foi Leila Diniz: o montão de areia para o caminhãozinho dos homens. G.C diz: “Leila Diniz encheu a pança/e foi desfilar no Leblon/em Copacabana/virou a cabeça dos homens/e desfez as mulheres/de suas saias de nuvens e areia/(...) o seu vôo foi tão leve/que a levou/para o umbigo do cosmos/de forma tão breve/”. Elis por Elis, tivemos uma, inquieta e vibrante: uma Regina sem medo de querer ser feliz.
Tanto agitou, em sua mente vertiginosa, e em seu corpo pequeno, que implodiu, numa overdose dantesca: foi nitroglicerina pura. Sendo de voz tão afinada, como explicar que não levou sorte, nem teve engenho e arte na afinação da arte de viver em paz, apesar da angústia inerente a todo Ser? Também, pudera: se desde criancinha, lá em Porto Alegre, já desafinava no coro dos contentes, é de se espantar que não tenha atravessado o samba muito antes. O poeta Gilson Cavalcanti confirma: “Sua voz/cascata de cristal/convocando a canção amiga/agora, um outro Tom/a faz equilibrar-se/na bossa etérea/entre Vinicius e Jobim/”. Esta Elis que foi a melhor intérprete de O bêbado e o equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc.
Ao final, recordando tantas partidas sem aviso e sem despedida, antes de lamentar que Elis tenha partido, é melhor re-cordar (tornar ao coração) que apareceu não a Margarida, e sim a sua Maria Rita, para animar a festa, segundo G.C. No poema Terezuda, mais um instante de alegre erotismo: “A beleza de Tereza/não se põe na mesa/Tetê se abunda/em bicicleta/é tesão de sobra/na padaria de meus olhos/Vem, Tetê, testar/a massa que nos promete o pão!’. E vai G.C. na carruagem da mesma malícia: “Kátia, de onde trouxestes/essas pernas tão lindas?/Drummond não teve acesso a elas/teria morrido de tanta poesia/”. O poeta Gilson Cavalcanti fecha o seu livro O decote de Vênus revelando-se pronto a encenar o último ato no drama de existir: “Completamente nu/nu de tudo, de todos/ (...) Fecham-se as cortinas,/porque a vida vai começar/do outro lado do espelho/”.
* Brasigóis Felício é poeta, cronista, e Membro da Academia Goiana de Letras.
Vem de Palmas um novo e bom livro do poeta e jornalista Gilson Cavalcanti. O título é “Anima Animus ou o decote de Vênus”. (Edição do autor) Coletânea de poemas que li com deleite, como um apreciador de boa poesia o faria, ao se deparar com textos de boa fatura poética, de autor naturalmente dotado para o cultivo da arte maior da literatura. De há muito aprecio a poética deste autor tocantinense, hoje vivendo e trabalhando em Palmas, depois de boas e produtivas jornadas em Goiás, onde teve boa passagem pelo jornalismo e nas lides culturais, sempre generoso e aberto às boas novidades.
Gilson Cavalcanti escreve versos simples mas não simplórios. Ele tem domínio do verso, tem humor, sabedoria, e uma verve meio satírica, o que o faz palatável aos viventes humanos dotados de sensibilidade e recepção para a arte poética. Já pelo título se vê que todo o livro tem como tema único o plural universo feminino. O poeta abre o volume com um texto da poetisa Yêda Schmaltz, a quem homenageia mais uma vez, no corpo do livro: “Esta vontade de morder o mundo/e o mar que me afoga/as mulheres estão continuando/no sofrimento do amor,/que droga/mulher não presta para nada/a não ser para chorar/”. (In Baco e as Anas Brasileiras).
Já na abertura do livro Eva toma a palavra, sendo a voz narradora constante: “Sou Eva/a viva flor primeva/a que desceu do paraíso/a par do que precisa consertar/Sou Eva/doida doida/doidivana, doidivina/a que se dividiu na dor/parindo outras dores/ Fui Eva/ de cama mesa e banho/meu corpo não tem tamanho/e trago na carne hipocondríaca/contorcida entre costelas/a serpente entretelada de estrelas/”. Depois de outras pérolas, uma pitada de ironia: “O meu corpo/arado aos dentes/para o caminho das estrilas/sou Eva e vivo/de semear a semente/no sutiã dos conventos/a mulher de quatro elementos/para o espetáculo da nova era/”.
No poema A seda que enreda o bicho, em feitio de homenagear a poetisa Yêda Schmaltz, assinala o poeta G.C.: “Yêda em sendo seda/enreda o bicho poesia/borda a senha da boca/onde o amor é/borboleta louca”. E, no final do poema: “Yêda costura sonhos/em ritmo de des(a)fios/é a alquimia de todos nós”. No poema seguinte, Questão de hábito, indaga: “O que guardas/debaixo desse hábito/de cambraia, mulher?/ A castidade em nome da fé/ou o ferrolho do prazer?”. Responde então o poeta: “Pois não vale a castidade/em nome da fé/uma colherinha de café/”.
Esmera-se em ricas metáforas, em seu poetar sobre o mito e o fascínio do feminino – e mesmo a essencialidade de ser reprodutora e útero da vida, o poeta não endeusa, não mitifica – mas questiona, espicaça, como no poema A mulher e o espelho: “De frente ao espelho/os seios hiperbolizados na mão/como quem semeia fruta-pão;em pleno outono/(...) Por que tudo o que é feminino/cheira a naftalina?/. (...) O vestido de noiva/o hímen complacente/que guardo de presente/ao amado:/o gesto transparente/escorrendo na grinalda do tempo/”. Poesia rica em imagens, inventiva, cheia de verve.
Mais adiante, o poeta questiona o sulco dos hábitos de sua musa, real ou imaginada pela licença poética: “O que guardas/debaixo desse hábito de cambraia, mulher?/A castidade da fé, ou o ferrolho do prazer?”. Gilson Cavalcanti permite-se a licença poética de brincar com os versos popularizados na canção de Ataulfo Alves, sobre Amélia, a mulher sem vaidade: “De verdade, Amélia era a melhor/porque despida de menor vaidade/de Amélia a Maria Bonita,/ a boca maldita da contrariedade/”. No poema Cabra da peste, uma mostra de sua verve bem humorada:”Maria da Guarda/é neta da noite/bebe até ficar rica/compra briga por açoite/”.
Há uma hora marcada para o encontro do tempo dos relógios, e com os perigos vertiginosos do sexo? O poeta reflete: “Sem horas/atrás do amor/rumo adiantado/A ausência/adia a cor do pecado./Há dias, os ponteiros do meu sexo/apontam para o seu sexo/Qual dia acerto? São pitadas de brincanagem, adicionadas, como ervas finas, à geléia geral da linguagem – que vem a ser a alquimia da transfiguração do verbo, na criação poética.
Eu digo: elas por elas tivemos Elis/que só não foi feliz/por que não quis?/Mais leve de fardo foi Leila Diniz: o montão de areia para o caminhãozinho dos homens. G.C diz: “Leila Diniz encheu a pança/e foi desfilar no Leblon/em Copacabana/virou a cabeça dos homens/e desfez as mulheres/de suas saias de nuvens e areia/(...) o seu vôo foi tão leve/que a levou/para o umbigo do cosmos/de forma tão breve/”. Elis por Elis, tivemos uma, inquieta e vibrante: uma Regina sem medo de querer ser feliz.
Tanto agitou, em sua mente vertiginosa, e em seu corpo pequeno, que implodiu, numa overdose dantesca: foi nitroglicerina pura. Sendo de voz tão afinada, como explicar que não levou sorte, nem teve engenho e arte na afinação da arte de viver em paz, apesar da angústia inerente a todo Ser? Também, pudera: se desde criancinha, lá em Porto Alegre, já desafinava no coro dos contentes, é de se espantar que não tenha atravessado o samba muito antes. O poeta Gilson Cavalcanti confirma: “Sua voz/cascata de cristal/convocando a canção amiga/agora, um outro Tom/a faz equilibrar-se/na bossa etérea/entre Vinicius e Jobim/”. Esta Elis que foi a melhor intérprete de O bêbado e o equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc.
Ao final, recordando tantas partidas sem aviso e sem despedida, antes de lamentar que Elis tenha partido, é melhor re-cordar (tornar ao coração) que apareceu não a Margarida, e sim a sua Maria Rita, para animar a festa, segundo G.C. No poema Terezuda, mais um instante de alegre erotismo: “A beleza de Tereza/não se põe na mesa/Tetê se abunda/em bicicleta/é tesão de sobra/na padaria de meus olhos/Vem, Tetê, testar/a massa que nos promete o pão!’. E vai G.C. na carruagem da mesma malícia: “Kátia, de onde trouxestes/essas pernas tão lindas?/Drummond não teve acesso a elas/teria morrido de tanta poesia/”. O poeta Gilson Cavalcanti fecha o seu livro O decote de Vênus revelando-se pronto a encenar o último ato no drama de existir: “Completamente nu/nu de tudo, de todos/ (...) Fecham-se as cortinas,/porque a vida vai começar/do outro lado do espelho/”.
* Brasigóis Felício é poeta, cronista, e Membro da Academia Goiana de Letras.
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