Gilson Cavalcante
Os olhos dela têm um brilho acetinado. Mestiça raramente chora e, por isso, conserva a paisagem original do seu interior. Seus óculos perderam as pernas. E agora estão guardados no criado-mudo, embaçados pelas lágrimas vertidas no verão. Vive de recordações e de tecer sonhos. Mas não consegue se lembrar da infância, nem dos pais. Ficou órfã muito cedo, quando passou a viver sozinha, em um sítio próximo ao povoado da Boa Provisão. Não teve filhos. Apenas dois gatos e um cachorro da raça Labrador a fazem companhia. Sua música são os gorjeios dos pássaros. Sabe do tempo e das horas pelo canto do galo e pelo relincho de um jumento.
Acorda sempre às cinco da manhã e deita-se após ouvir a “Voz do Brasil”, quando passa a auscultar o coração da noite, a dar atenção às vozes que lhe vêm do fundo da alma. Sabe da vida e de seus desdobramentos pelos sinos lineares das cigarras e a fosforescência dos vaga-lumes. Aliás, foram com os bichos e insetos que ela compreendeu a luz. Com as plantas e as ervas aprendeu a medicina celeste.
Apesar de morar numa casa arejada, com varandas ao redor, sem energia elétrica, Mestiça não faz uso de velas nem de lamparina. (Uma lanterna de alumínio próxima ao filtro de água, esquecida por um visitante numa noite de lua cheia de um dia qualquer de anos atrás, exerce sua ferrugem sem nenhuma serventia). No fogão à lenha, desenvolve a magia alquímica da culinária natural e o poder dos chás. Só faz uma refeição por dia.
Quando sente saudade de algo inefável, cantarola, solfeja, assovia canções e vinhetas que ela mesma inventa. É quando fica nua sem se preocupar com quem pudesse chegar a qualquer momento. Mas, dificilmente recebe visitas, a não ser dos passarinhos que pousam em seus ombros no inicio da manhã e no finalzinho da tarde, quando o crepúsculo faz renascer em seus olhos as borboletas do outono, despetaladas a cada piscadela. Fecha-se a janela e Mestiça se volta para dentro, para o seu interior.
Se não fosse a poesia, a imaginação, já teria morrido. “Só a música e a poesia podem salvar o mundo”, divaga em seu silêncio, em seu solilóquio de plena ternura e alumbramento.
Mestiça me acorda no meio da madrugada. Quer que eu fale pra você, leitor, do seu, dela, ofício de tecelã. Fui estar com ela. Tirou-me do sono para mudar o curso dessa história. Ai, que sofrimento! Por que fui inventar essa ficção? “Diga aí para os seus leitores que sou feliz em minhas desfiaduras, que brinco com bilros como quem pratica balé com as mãos, que cardo o algodão como quem despenteia os cabelos de Medusa. Escreve que também faço macramê com umas embiras de palhas de babaçu e buriti. Tudo que faço está aqui bem guardado nesses baús empoeirados, nesses armários. São peças que guardo pra esperar meu amado. Eu sei que um dia ele vai aparecer. Tenho até uma grinalda e um vestido de noiva. Estava aqui pensando: não quer ser meu noivo? Você me inventou, agora cuida de mim, senão vou lhe assombrar para o resto da vida...”.
Olha aqui, Mestiça, sou poeta e vivo de imaginações. Ninguém pode interferir no meu ofício de escritor. Eu não interfiro no seu. Vamos fazer um pacto, entrar em um acordo para que não deixemos o leitor confuso e perdido nesse emaranhado de conjecturas e divagações. Estabeleceremos um romance que pode se tornar uma novela ou um seriado de TV. No final, morreremos abraçados, mas sem interferência de Shakespeare.
Do jeito que apareceu, Mestiça sumiu como um raio. Deixou-me sozinho, com a responsabilidade de terminar esta história. Ao contrário de Penélope, que tecia e desmanchava tudo o que fazia à espera de Ulisses, Mestiça aguarda o seu amado pelo acúmulo de lembranças. A única coisa que consegue desfazer são suas tranças. Nas horas vagas, tece cabelos como quem se prepara para um baile. Minha princesa começou a tomar forma quando meus olhos pesaram e debrucei-me sobre o computador.
Mestiça resolveu me visitar numa dessas madrugadas, quase amanhecendo o dia. No meio do caminho, começa a armar uma tempestade. Trovões e relâmpagos. Um raio caiu próximo, por ali, e ela, com o susto, sofre o desmaio. Após um tempo desacordada, Mestiça retoma os sentidos, passa as mãos nos olhos e fica em estado de expectativa, assustada. Mestiça não precisa mais levar a vida apalpando as coisas, andando pelos cantos, tropeçando em palavras. Ela ia me conhecer em braile. Ficou decepcionada com o que viu à sua volta: cenário de destruição da natureza. Nem quis mais saber de mim. Voltou dali meso, correndo desesperada.
Em casa, ainda trêmula, retirou a roupa encharcada, tomou banho e, ao sair do banheiro, deu de cara com o imenso espelho que fica na sala, em meio a seus apetrechos de tear. Assusta-se com a aquela imagem refletida. Não conhecia aquela pessoa ali à sua frente. Aliás, nem sabia da existência daquele espelho. Demorou um pouco para reconhecer que era ela mesma.
Começou a apalpar o corpo, num ritual de autoconhecimento. Fica demoradamente alisando os longos cabelos ondulados com alguns fios brancos. Não sabe se ri ou chora.
(Mestiça tinha noção das cores pelos seus estágios de transcendência mental. O seu arco-íris apresentava mais de sete cores, e a lua se desdobrava em de quatro fases).
Aqueles olhos de uma tonalidade violeta estão úmidos, não sei se de saudade ou de melancolia. Podem ser os dois sentimentos simultâneos. Tudo à sua volta lhe é estranho, apesar da intimidade que tem com os objetos e peças da casa.
Acaricia os lábios, balbucia algumas palavras ininteligíveis e continua em seu solilóquio até chegar aos seios. Fica enamorada com eles. Tenta beijá-los e não consegue. Começa a massageá-los, se excita e decide beliscar os mamilos com a mão esquerda e, com a direita, inicia o ritual da volúpia utilizando os dedos sobre o clitóris.
Após vários orgasmos, dirige-se vagarosamente em direção ao baú, onde está guardado as que teceu durante anos. Vasculha tudo e descobre o vestido de noiva com cheiro de guardado. Um vestido preto de cambraia, com tiras bordadas coloridas no seu barrado, confeccionado para o dia seu velório. Um decote generoso que dispensava sutiãs.
Veste aquela indumentária, calça as sandálias de couro rasteirinhas (ou rasteirinhas de coro?), e vai para a igrejinha do povoado.
Ajoelha-se em frente ao altar, faz o sinal da cruz e roga a Deus pelo seu amado.
Mestiça está lá até hoje na igrejinha, cumprindo promessa para o advento do amado que ela nem conhece. Vez por outra percebe o vulto de Penélope passando em frente ao altar. “Êta mundo complicado! Quero me encontrar com Narciso pra devolver aquele espelho besta”.
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