O livro de Gilson Cavalcante, de acordo com a comissão julgadora, composta pelos escritores e críticos literários Delermando Vieira Sobrinho, Carlos Willian Leite e Maria de Fátima Gonçalves Lima, A Mofrina-flor de Morfeu trata-se de uma obra poética “erguida dentro do contexto existencial, muito bem estruturada, cuja lírica se concretiza ao fôlego das ideias inerentes à dor humana, como, também, à eficácia do jogo de palavras, seus significados, estigmas e vicissitudes, tão correlatos ao íntimo do ser”.
A comissão conclui que o poeta Gilson Cavalcante “trabalha com concisão, lirismo, sem, contudo, deixar-se perder em suas nuances poéticas, ao sentido de suas ideias, bem como às imagéticas, mensagem e sabedoria”.
II
eis aqui a dor:
poema irrigado a sangue
e morfina.
o amor furou meus olhos,
o amor-fêmea.
amorfo, procuro nos ossos
o gesto de mim
forma e fundo.
a dor morfológica
morfema, morfina-flor.
o poema em conta-gotas
comprimido no coágulo.
grito, grito
para anunciar essa dor
coletiva que nos aglutina
na contorção do mito.
III
não fui eu
quem inventou
a anestesia
nem o Anador.
inventei essa poesia
como tentativa de alívio
para nossa insônia.
nem o vazio inventei
embora repleto
em seu conteúdo.
de repente
sou o adorador
de ausências
enrolando o fogo
no círculo da serpente.
IV
dorme em mim
uma dor de marfim
não é de mármore
a memória do muro
de Berlim
vivo de acidentes
para recompor os olhos
diante da paisagem
visto que outono
me desmancha do outro
lado do ocidente
minha dor onera o sono
e Morfeu acorda os meus ombros
para o pesadelo de Sísifo
a pedra que tudo protela
me arremessa o corpo
acima da primavera
VIII
em Edu
a dor se educou
no fígado
(nas vísceras
o fogo de Prometeu)
a dor pedagógica
ensina o caminho
da lógica da flor
e do espinho
a dor e as suas aulas
de abstracionismo
no alívio do concreto
da arte de ¼ moderno
a cor da dor
no mar-te-lo ver-me-lho
inter-fere, Interferon
dentro da metáfora
a agulha se faz fantasia
dor, azia, ânsia
nem por isso a eutanásia
só quem tece a dor no fígado
sabe o fogo e o hálito do abismo
XII
codificaram a nossa dor
no DOI-CODI
a dor de não-lágrimas
a dor do silêncio
nossos retratos em 3x4
nossos dados gritos dedos
empilhados nos arquivos
mortos pesaram
sobre os anos de chumbo
o inventário dos ossos nossos
dilatados nos olhos
a delação na dor
embrulhada pela página
virada da história
de que adianta a exumação
dos cadáveres se a dor continua
com os seus martelos vermelhos?
XVII
se me doo
não grito
doar não
me deixa aflito
doer:
nosso eterno conflito
XX
a dor é transparente
e vem na ponta d´agulha
líquida onde mora
seu antídoto
antes do mito
ela mente
essa dor passa no sono?
dormir a dor
é um ledo engano
doer infinitamente
até entendermos a morfologia
desse sentimento
até doarmos o sangue
suficiente da guerra
que inventamos
ou sagrarmos
até a última gota do poema
a dor como dom
do resgate é plena
Em companhia de mim mesmo
saio deste livro
(não sei se livre)
pingando o último poema
porém aliviado
apenas com uma cicatriz
nos olhos
vou voltar ao passado
e levo como presente
as coisas que deixei de lado
o futuro é o que se faz
alado
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