terça-feira, 25 de outubro de 2011

A Morfina-Flor de Morfeu

O livro de Gilson Cavalcante, de acordo com a comissão julgadora, composta pelos escritores e críticos literários Delermando Vieira Sobrinho, Carlos Willian Leite e Maria de Fátima Gonçalves Lima, A Mofrina-flor de Morfeu trata-se de uma obra poética “erguida dentro do contexto existencial, muito bem estruturada, cuja lírica se concretiza ao fôlego das ideias inerentes à dor humana, como, também, à eficácia do jogo de palavras, seus significados, estigmas e vicissitudes, tão correlatos ao íntimo do ser”.
A comissão conclui que o poeta Gilson Cavalcante “trabalha com concisão, lirismo, sem, contudo, deixar-se perder em suas nuances poéticas, ao sentido de suas ideias, bem como às imagéticas, mensagem e sabedoria”.

II
eis aqui a dor:
poema irrigado a sangue
e morfina.

o amor furou meus olhos,
o amor-fêmea.

amorfo, procuro nos ossos
o gesto de mim
forma e fundo.

a dor morfológica
morfema, morfina-flor.

o poema em conta-gotas
comprimido no coágulo.

grito, grito
para anunciar essa dor
coletiva que nos aglutina
na contorção do mito.


III
não fui eu
quem inventou
a anestesia
nem o Anador.

inventei essa poesia
como tentativa de alívio
para nossa insônia.

nem o vazio inventei
embora repleto
em seu conteúdo.

de repente
sou o adorador
de ausências
enrolando o fogo
no círculo da serpente.


IV
dorme em mim
uma dor de marfim

não é de mármore
a memória do muro
de Berlim

vivo de acidentes
para recompor os olhos
diante da paisagem
visto que outono
me desmancha do outro
lado do ocidente

minha dor onera o sono
e Morfeu acorda os meus ombros
para o pesadelo de Sísifo

a pedra que tudo protela
me arremessa o corpo
acima da primavera

VIII
em Edu
a dor se educou
no fígado

(nas vísceras
o fogo de Prometeu)

a dor pedagógica
ensina o caminho
da lógica da flor
e do espinho

a dor e as suas aulas
de abstracionismo
no alívio do concreto
da arte de ¼ moderno

a cor da dor
no mar-te-lo ver-me-lho
inter-fere, Interferon
dentro da metáfora
a agulha se faz fantasia
dor, azia, ânsia

nem por isso a eutanásia

só quem tece a dor no fígado
sabe o fogo e o hálito do abismo


XII
codificaram a nossa dor
no DOI-CODI
a dor de não-lágrimas
a dor do silêncio

nossos retratos em 3x4
nossos dados gritos dedos
empilhados nos arquivos
mortos pesaram
sobre os anos de chumbo

o inventário dos ossos nossos
dilatados nos olhos

a delação na dor
embrulhada pela página
virada da história

de que adianta a exumação
dos cadáveres se a dor continua
com os seus martelos vermelhos?


XVII
se me doo
não grito

doar não
me deixa aflito

doer:
nosso eterno conflito

XX
a dor é transparente
e vem na ponta d´agulha
líquida onde mora
seu antídoto

antes do mito
ela mente

essa dor passa no sono?

dormir a dor
é um ledo engano

doer infinitamente
até entendermos a morfologia
desse sentimento

até doarmos o sangue
suficiente da guerra
que inventamos

ou sagrarmos
até a última gota do poema

a dor como dom
do resgate é plena

Em companhia de mim mesmo

saio deste livro
(não sei se livre)
pingando o último poema
porém aliviado
apenas com uma cicatriz
nos olhos

vou voltar ao passado
e levo como presente
as coisas que deixei de lado

o futuro é o que se faz
alado

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